terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Nina gosta de fruta



Minha sobrinha, que tem só quatro anos, foi estimulada pela professora para desenhar sua história favorita, logo na primeira semana de aula. Espontaneamente e, de memória, fez o desenho acima. Fazendo a comparação com a pirogravura que fiz para a capa do poema QUEM NÃO GOSTA DE FRUTA É XAROPE percebi como foi capaz de captar os detalhes essenciais da ilustração. Subestimar uma criança é mesmo uma xaropice!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Biennial of Illustrations Bratislava 2007



A Bienal de Ilustração de Bratislava – BIB é uma tradicional mostra competitiva internacional de originais de ilustradores de todo o mundo, realizada na Eslováquia. Em 2007, entre os 388 ilustradores selecionados de 38 países, o Brasil exibiu os trabalhos de dezessete ilustradores. Fiquei muito feliz em fazer parte desse grupo seleto, participando da exposição e do respectivo catálogo da 21ª edição do evento, com as pirogravuras feitas para o meu poema QUEM NÃO GOSTA DE FRUTA É XAROPE. Pelo mesmo trabalho recebi também a menção honrosa no XV Salão Internacional de Desenho para a Imprensa de Porto Alegre, na categoria editorial.

Mais um pulo do gato!


Em breve, estará na praça mais uma edição do Balaio de Gato, meu segundo livro lançado pela Global. Muito obrigato, pessoal!

Entrevista à jornalista Paula (Editora DCL)

Artista completo, autor e ilustrador, Negro conta nesta entrevista exclusiva que “algumas vezes o conteúdo do livro surge com as formas” e que é normal ficar frustrado com os limites do trabalho, “mas isso não é mal. Pois é a insatisfação e a dúvida que movem a gente.” Descubra ainda como foi a infância, entre a cidade e o campo, desse pirogravurista que tem 15 anos de carreira e mais de cem livros publicados.

Editora DCL – Mauricio, como foi sua infância?

Mauricio Negro (MN) – Nasci na Avenida Paulista em 1968, o ano que nunca acabou, mas que para mim só estava começando! Minha família é de Santana. Do Jardim São Paulo mudamos depois para o Jardim Paulista. E para completar sou sãopaulino, filho de ex-boleiro. Sou, enfim, paulista da gema.

Quando criança zanzava livre pelo bairro, como era normal, à pé ou de bicicleta. Jogava bola, taco, queimada e fazia pipas. Adorava, sobretudo, o quartinho do fundo do quintal, o primeiro ateliê. Que dizer, era onde eu, minha irmã e eventuais primos ou amigos fazíamos as nossas experiências! (Por isso, nossa casa estava sempre misteriosamente arrumada). Lá montei uma vez uma peça de teatro de bonecos para o pessoal do bairro. Fiz o roteiro, bolei personagens, suas falas, construí os bonecos e figurinos com a ajuda da minha avó e editei a trilha sonora. Um dos heróis, que era recheado de alpiste, vazou durante a encenação.

Mas os momentos mais marcantes da minha infância, sem dúvida, foram vividos na Fazenda Santa Rosa. Era lá onde passávamos as férias, feriados, todo tempo que conseguíamos. Lá passava horas abstraído na mata, fuçando e me deslumbrando com uma infinidade de cores, formas, cheiros, ruídos e movimentos. A floresta é uma biblioteca ou sinfonia verde, e não apenas verde, de infinitos volumes e leituras. É ali que percebemos como somos seres toscos e presunçosos. Alguns personagens também me marcaram. Lembro da suavidade e força do Seu Altino, principal empregado da fazenda, filho de ex-escravos. Também acompanhei seus conhecimentos para serrar, construir, assorear, amarrar, laçar, consertar, abrir poço, pescar pitus e outras tantas habilidades. Foi também naquelas matas que vi jaguatirica, guará, cateto e muitas cobras. Lembro também do acampamento de escoteiros, acampados na floresta. E dos amigos e vizinhos, os velhos Carlinhos e Clarice, que viviam o conflito entre abandonar ou manter muito discretamente as tradições afrobrasileiras. Meu avô Nenê (nonno, bem dito) e Seu Carlinhos foram amigos, assim como as respectivas famílias, por longos anos.

Mas também me recordo das dificuldades, das queimadas que na seca se alastravam. E vinha gente ajudar a apagar até de vassoura na mão. Ainda fico muito triste com isso, pois as queimadas são uma ameaça ambiental ainda maior do que a fumaça dos escapamentos dos carros. E também não esqueço outras coisas, não menos impactantes, como algumas fortes tempestades e geadas, alguns acidentes eventuais, as ameaças de loteamento e a dificuldade financeira e logística de zelar por um patrimônio privado, de benefício público.

DCL – Você falou do teatrinho que apresentou aos amigos... Você tinha consciência do que estava fazendo?

MN – Meu único impulso foi me divertir, divertindo. Lembro bem do entusiasmo e da mágica que senti em ao misturar tudo aquilo. Mas é claro que não tinha a menor noção do que fazia. A graça daquele momento é a mesma que carrego agora. Um artista nunca sufoca sua criança interior.

Os adultos perdem o passaporte para transitar entre a fantasia e a realidade, como toda criança faz. Mas têm a chance de recuperá-lo quando conseguem reaprender com os próprios filhos. Portanto, não me vejo como alguém que faz arte ou literatura para crianças. Sou o mesmo menino que continua brincando de teatro de fantoches para se divertir. É claro que precisamos do aplauso, reconhecimento – e dinheiro! – mas fazer força para agradar não é o mote. O artista brinca com a realidade para assimilá-la, assim como fazem os filhotes de tantas espécies.

DCL – Agora, fale de sua infância e a relação com os livros e com as artes gráficas, quando você ainda não sabia o que eram artes gráficas.

MN – Os livros têm sido desde sempre boa companhia. Por sorte, meu avô e meus pais gostavam de leitura. Exemplos assim são estratégicos para despertar o interesse da gente. Até hoje, nas estantes do meu estúdio, tenho alguns exemplares raros de obras universais, edições encadernadas, com capas de tecido, gravuras etc. Herdei uma parte do acervo. Outra ainda, ficou com meus primos. Se em casa já havia gente lendo, na escola alguns poucos amigos também eram leitores entusiasmados. Costumávamos trocar dicas e livros. E lia qualquer tipo de livro, sem imposições. Gostava de ler em casa, no sítio ou mesmo na praia.
Embora já tivéssemos TV, o negócio era controlado. Tinha que dormir cedo. Mas o tempo era mais elástico. Lembro que ouvíamos música na vitrola, horas a fio. As mulheres da família sambavam levantando fiapos do tapete de palha. E meu pai e eu fazíamos a percussão. Uma delícia era jogar escravos de Jó, com caixinhas de fósforos, e a mesa cheia de gente. Café preto, baralho e pinhão assado. Ao contrário da cidade, o melhor do campo é o lado de fora. Só íamos para o quarto para dormir. Essa liberdade hoje em dia tem que ser reconquistada.
Minha mãe é uma mulher inteligente e sensível. Onde pôs a mão, fez bem feito. Dela herdei a queda para as artes, pincéis, palhetas e tintas. Trabalhou anos com porcelana, óleo, desenho à carvão e bico de pena. Também estudou e praticou a arte milenar, e hoje rara, do autêntico charão chinês, que mistura resina vegetal, ouro em pó, madrepérola, pedras, entre outros materiais nobres, com uma técnica refinada de polimento que exige muita paciência e suor. Foi também professora e sempre gostou de escrever. Fui por ela estimulado a desenvolver tudo aquilo que já manifestava espontaneamente. Sempre curti desenhar e escrever, mas só compreendi o eram as artes gráficas nos anos 1990. E ilustrei o primeiro livro infantil em 1992. Daí, não parei mais. Pois descobri, aos poucos e com gosto, o sentido de fazer o que faço.

DCL – Como era São Paulo nos anos de sua infância e adolescência?

MN – Pertenço à geração sanduíche. A que tem visto as coisas mudarem mais rápido e radicalmente. Que cresceu entre a pílula e a camisinha. Entre a ditadura e a democracia. Entre o macro e o microondas. Entre o fast food e a volta da slow food!

Quando criança, lá no meu bairro, era tudo mais tranqüilo. Era possível ficar na rua até o horário combinado de voltar para casa. Minha mãe só reforçava o óbvio. Não aceitar carona ou bala de ninguém. Coisas desse tipo. Andava de bicicleta o dia todo e aproveitava as peladas com bola de capotão, no terreno baldio. Na esquina vizinha morava o Ayrton Senna, que era adolescente e ninguém fazia a menor idéia do seu destino.

Arquitetura mesmo, só fui perceber na faculdade. Achava bacana, principalmente sem régua e esquadro! Mudei de curso quando percebi que gostava mesmo é de arte e comunicação. Por sinal, tem um monte de arquitetos que viram ilustradores, designers ou artistas plásticos. São Paulo está infestada de prédios caricatos, com nomes estrangeiros e estilo neonada. Será que morar em um Villaggio di Veneto, Termi de Caracalla ou Maison Debret faz sentido? Sofremos bastante, sem perceber até, com essa perda de identidade. Não é de hoje. O etnógrafo francês Claude Lévi-Strauss, lá pelos anos 1930, já tinha notado essa tendência burguesa em querer ser o que não é, quando conheceu os tristes trópicos. Existem arquitetos admiráveis, é claro. Mas a opinião dominante, que condiciona as demandas, ainda se equivoca demais. Somente alguns têm olhos para enxergar a própria riqueza. A maioria fica de olho na galinha do vizinho, que parece misteriosamente sempre mais gorda.

DCL – A sua relação com a natureza é algo muito presente nas suas ilustrações. Você acha que isso contribui para a formação de seu estilo de desenhar?

MN – Taí algo que vale comentar. Durante alguns anos, fui muito influenciado pela chamada cultura pop. Que é diferente da cultura popular, pois tem a ver com a vivência urbana. Por conta da globalização, as cidades se assemelham demais. Seus cidadãos compartilham referências, modas, comportamentos, angústias e desejos. E todas as formas de arte, feitas nesse contexto, acabam orbitando em torno dos mesmos valores, vícios e algumas virtudes. Mas acho que não resolvemos bem a equação de viver, sem impactar, sem degradar, sem violar o que aqui estava bem antes de nós. Como herdeiros da revolução industrial somos agora obrigados a rever a idéia de progresso, pois a mesa está bastante bamba.

Morei um período na França e tive a chance de comparar realidades. Quem tem uma oportunidade dessas, ao menos uma vez na vida, sabe o que significa. Pude perceber o que é ser de terceiro, num país de primeiro mundo. E não se trata somente de um trocadilho bobo. Voltei com a convicção de que, se é que existe uma utopia mais sensata, devíamos todos nos preocupar em forjar uma nação de segundo mundo. Pois está faltando equilíbrio, em muitos sentidos.

A experiência por lá também me fez compreender uma série de coisas que antes apenas vislumbrava. Fui forçado a rever minha própria identidade como cidadão e artista brasileiro. Não trouxe papéis refinados e pincéis de pêlo de marta. Meu desejo foi buscar o material mais bruto, espontâneo e original que pudesse encontrar aqui no Brasil, como compensados e restos de materiais reaproveitados, cartolinas, papelão e anilinas compradas em lojas de material de construção. Mais do que um motivo, havia um sentimento.

Na volta ao estúdio em São Paulo, decidi usar o fogo para gravar. Porque era o mais primitivo recurso que eu consegui conceber. Mais tarde, notei que poderia acrescentar pigmentos naturais. E fui testando materiais, fazendo misturas. Tudo foi se revelando por etapas. Hoje, penso que a abordagem que tenho feito através das pirogravuras não é somente uma questão de estilo ou expressão. Há uma mensagem subliminar contida no uso desses recursos alternativos ou orgânicos.

Quando me dei conta, já tinha deixado a cidade para trás e me virado novamente para o sertão. A natureza reentrou pela porta aberta e fiquei feliz da vida com isso!

DCL – Essa imagem que você trouxe, da floresta como uma biblioteca ou sinfonia verde, é de sua infância ou veio depois de adulto essa noção?

MN – Acho que essas percepções todas ocorrem quando somos crianças ainda. Até porque estamos mais receptivos a tudo nos primeiros anos. Nunca pensei na floresta como um biblioteca verde naquela época, mas certamente já a sentia dessa forma. A comparação só me ocorre agora. Porque aprendi a dar forma àquele sentimento. Acho que é mais ou menos assim que funciona. A natureza dá mais sentido e chão para as minhas ilustrações e idéias de agora.

DCL – Você diz que acompanhou os conhecimentos de serrar, assorear etc. Tem algum desses conceitos que você usa no seu trabalho como artista plástico? Como isso começou a fazer parte de seu trabalho?

MN – Nunca pensei sobre isso. Mas é uma idéia bem interessante…


DCL – Toda sua vivência (infância etc.) é fonte de inspiração, né?

MN – A vida é uma surpresa. E pode mesmo fornecer muitos motes. Nesse sentido, somos apenas plagiadores em termos de criação. Nem mesmo dá para dizer o que nos influencia mais. Tudo conta, mesmo o que desprezamos ou sequer notamos.

Fico meio cabreiro com aqueles nostálgicos demais com a própria infância. As memórias ainda são intransferíveis e pessoais. Toda infância também traz aspectos amargos ou dolorosos. E os mais velhos sempre se esforçam para lembrar apenas do melhor. Às vezes, soa até cruel insinuar às crianças que não terão um infância como a que nós tivemos! Mas admito que as perspectivas não são mesmo muito animadoras, se não houver mais atitude dos adultos em nome da ética universal e da bioética.

Mas o mundo de hoje tem contornos diferentes. Sou mesmo muito crítico à humanidade, lá no íntimo. Mas não gosto de traçar um retrato negativo definitivo, para crianças que ainda saboreiam suas primeiras descobertas, num ritmo já tão distinto do meu. E se, apesar de tanta inegável dificuldade que elas hoje encontram, existirem compensações e saídas que eu mesmo não sou capaz de perceber? Não sei, o fardo que herdam é mesmo bem pesado. Não sei o que farão com isso. Mas ainda há tempo. Temos que arregaçar as mangas. E a hora é agora. Não tenho filhos ainda. Mas penso com freqüência nessas coisas, com certeza.
Ainda sobre esse tema, preparo um novo livro, na companhia do escritor indígena Daniel Munduruku. Terá justamente esses temas como eixo central, com o plano de resgatar certas reflexões fundamentais sobre a vida e a natureza. Mas o resto é segredo, por enquanto!

DCL – Partindo da pergunta anterior: Qual é a função ou papel do livro infantil na construção do imaginário infantil e na formação do leitor?

MN – Creio que o livro infantil é uma das últimas reservas naturais da fantasia, franqueada a qualquer criança, tenha a idade que for. Mas é preciso deixar suas tralhas na chapelaria, antes de entrar. Isso é uma condição obrigatória. Diante de um mundo adulto empobrecido pela obsessão em catalogar, explicar, coisificar, desmitificar, documentar e muitos outros recursos que adotamos em nome de uma suposta objetividade. O escritor Jorge Luís Borges anunciava que preferia a ficção à realidade, pois a última lhe parecia falsa demais. Também acho que somente a poesia e a fantasia podem revelar certas coisas. A subjetividade na arte é essencial ao pensamento e ao desenvolvimento do espírito critico e da identidade.
Antes de existir a literatura infantil, como os adultos a decidiram chamar, existia a literatura por si só. E antes da escrita, narrava-se apenas. Quando os índios contam histórias ao redor da fogueira, adultos, velhos e crianças reúnem-se para ouvi-las. Vejo que os adultos deixam-se hoje seduzir pelos livros infantis sob o pretexto de presentear ou ler para as crianças. Muitos lêem, e obtém mais prazer com isso, que pelos seus livros de auto-ajuda, biografias ou literatura dirigida. A literatura infantil, através de palavras e imagens, pode mesmo proporcionar um deslumbramento. E encantar quem estiver disponível para a poesia que costumam conter. A criança se identifica com isso, porque isso é parte do seu cotidiano. Sem condicionamentos ou respostas prontas. O amor pelo livro, de uma forma geral, pode gerar amor pela vida. E isso é para sempre.

DCL – As idéias que você transmite em seus trabalhos costumam ser definitivas? Já houve alguma vez em que você ficou insatisfeito e quis modificar depois de pronto e entregue um trabalho?

MN – Nada é definitivo, na vida ou na arte! Quem não é capaz de mudar de opinião está em apuros. É normal ficar frustrado com os limites do seu trabalho. Quase sempre, o resultado final fica diferente do imaginado. São muitas etapas, da idéia à construção da obra. Temos que nos conformar, porém. E quando a criatura afinal ganha vida, poderá colocar o criador em cheque! Mas isso não é mal. Pois é a insatisfação e a dúvida que movem a gente.

DCL – De que forma a leitura do texto que você vai ilustrar interfere na escolha da técnica? Conte o caso de Brasil-folião.

MN – Tenho buscado vincular, dentro de certos limites, o conteúdo do livro ao material e recursos técnicos empregados. Um processo bem estimulante para mim. Os materiais podem ser uma maneira alegórica de comunicar. A atitude implicada nisso conta, além das ilustrações propriamente ditas. Nem todo leitor se dá conta, é claro. Mas gosto de brincar com isso. No Brasil-folião, por exemplo, usei papel bruto como suporte, anilinas baratas e pigmentos naturais como açafrão, café, óleo de nogueira etc. Recursos disponíveis, acessíveis, bem brasileiros enfim. E acrescentei lantejoulas, paina e palitos de fósforos, conforme o caso. É uma espécie de metaliguagem, que pode expandir a mágica.

DCL – Você também escreve, Mauricio. Mate a curiosidade do leitor e conte como é o momento de criação de um artista completo. Na sua cabeça já vem texto e ilustração? Já aconteceu de a imagem ser criada antes do texto?

MN – Algumas vezes o conteúdo do livro surge com formas. Assim foi com o Zumzumzum, que é um livro de imagens. Primeiro pensei em dragões e serpentes sendo engolidos quase infinitamente, como acontece na história da humanidade. A cultura dominante que sempre absorve as anteriores. E percebi o percurso étnico que poderia explorar com a minha Ouroboros. Depois, me perguntei o que mais poderiam representar aquelas criaturas sinuosas em tradições distintas. Isto é, o mesmo motivo e suas conotações diversas. O dragão para os chineses é um símbolo positivo, ligado à força da natureza. Na Europa medieval, pelo contrário, foi sempre associado ao mal e às tentações da alma. O que conta é a interpretação contextual de cada indivíduo. Então, montei a narrativa de trás para frente. Somente no final descobre-se que a vermelhidão no braço do menino – na verdade, apenas uma queimadura de taturana – deu margem à múltiplas leituras extrapoladas e concepções mitológicas.
Tem casos em que o texto nasce antes. Como o poema recitado pelo feirante no livro Quem não gosta de fruta é xarope. Tomei carona nessa forma bem-humorada de divulgação popular para lembrar das várias frutas brasileiras ou aclimatadas. Para fazer refletir sobre a globalização e a brasilidade. Ao escrever o poema, jamais pensei em ilustrá-lo com as frutas mencionadas ao pé-da-letra. Então, fiz um passeio por alguns cenários, tradições e ícones nacionais. Tudo em nome da diversidade, em terrenos diversos. Para celebrar o que temos de bom. E o que muitos desconsideram, infelizmente. Nesse livro as ilustrações vieram depois do texto, com a cama já feita.

DCL – Agora conte-nos a sua opinião sobre a importância da ilustração no livro infantil.

MN – Em cada livro há uma dança potencial entre as palavras e as ilustrações. Quando existe um entrosamento bom entre os pares é uma beleza. Do contrário, alguém pode levar um pisão indesejado. A imagem tem muito mais relevo hoje do que tinha no passado. O cenário mudou. Houve uma perda significativa de vocabulário e uma simplificação às vezes excessiva nos textos. Para compensar, as edições têm sido cada vez mais exuberantes nas imagens e projetos gráficos. E o diálogo entre esses elementos que compõem a obra passou a ser talvez o desafio para o livro contemporâneo. É preciso compreender que a ilustração também tem autonomia, também comunica e pode trazer uma narrativa própria ou até mesmo ousar contrapor o texto em casos especiais.
Os livros ilustrados também podem ajudar crianças e adultos a ler criticamente o mundo complexo e imagético que nos cerca, cheio de símbolos mutantes, ícones, sinais de trânsito, mensagens subliminares, botões, logotipos e tantos outros códigos visuais. Fala-se muito sobre a questão de leitura no Brasil. Mas poucos dão a devida atenção ao analfabetismo visual, cuja importância não pode ser esquecida. Os adultos, mais do que as crianças, têm muita dificuldade para ler e interpretar imagens. E todos os dias são manipulados pelo que vêem e assistem na TV.
A ilustração no livro infantil ajuda construir a atmosfera da obra. Envolve o leitor, quase que imediatamente. Quando bem concebida e realizada é como um campo magnético protetor ou um colchão isolante da realidade. Tem quem ainda pensa que ilustrar é adornar, incrementar as vendas ou somente calçar a leitura. Tem um significado que prefiro: ilustrar é jogar uma luz sobre um tema. Não somente para elucida-lo completamente. Pode ser uma meia-luz, criada apenas para intrigar, insinuar e provocar o leitor, deixando espaço para a sua imaginação.